Friday 19 February 2016

Estado da arte

As seis da tarde/noite é um mistério. Aquela hora que nos une por diferentes portas à mesma sala de um lugar com tantas variações ao longo do tempo. Espaço-tempo desencontrado nas equidistâncias, carregado de alterações de luz no Sul, e inevitavelmente escuro no Norte. Nunca será seis da noite no Sul, mesmo sendo escuro às seis; e nunca será seis da tarde no Norte, porque ali às seis é sempre escuro. É a mesma seis horas que nos fazem diferentes. É esse tempo que é o mesmo nos dois lugares, mas que tem luzes na mesma exata hora sempre tão distintamente atrevida. Esse tempo é lugar de coincidências de crepúsculo no meio do ano, e é tão diferente ao longo do calendário restante; tão matizado, tão ignorantes e conhecidos são eles, esses espaços, de tempos. Falo de um tempo que é o mesmo em dois espaços, e ainda assim também é diferente, depressivamente irreverente, separados pela mesma linha tênue que representa nossa diferença, une nossos lugares, sombreia e alumia os nossos espíritos neste(s) estado(s) da arte.

Thursday 18 February 2016

Mohammed e Moisés


Seu Moisés (ou será Moizés?) nunca tinha ido até Maceió antes dos 14 anos. Quando foi, foi a pé, junto com um parente, atravessando até braço de rio. Nem lembra mais quanto tempo demorou. “Mas tinha que ir”, disse assertivamente.

Para Mohammed liberdade era ter um gato, e esse “tinha que ir" do outro não faria sentido. Seria algum tipo de Hajj? Estaria o velho obrigado a peregrinar? De certo iria correr também as sete voltas entre os montes de Safa e Marwa, “só o que faltava”, pensaria.
E enquanto um dava graças a Deus, o outro não estava nem ai pra Alá.

Quando a praia do Francês era o paraíso, nas suas palavras, só mais uma vila de pescadores no amplo litoral de Alagoas, Seu Mois(z)és aprendeu todos os ofícios da pesca artesanal que lhe permitiram criar oito filhos – com a graça de Deus – e nenhum se meteu com drogas. Nem mesmo o Cícero, um desses oito, que ao invés de entorpecentes, trabalha em uma das dezenas de pousadas que agora dominam as ruazinhas do pequeno balneário. E isso sem contar os estabelecimentos na beira, bem na beira, do mar. Um mar morno, com parte com onda, parte sem onda, larga extensão de areia branca, areia mais escura, parte com algas, parte lisa e aveludada, e um monte de coqueiros.

Mas agora o seu Mois(z)és avisa, de bom coração e pra aquietar sua alma que fica sentada com ele junto ao meio-fio, aos turistas encantados, ou desavisados, ou burros mesmo, avisa que ir à praia a noite, especialmente depois das 22h, não é bom, não. Já não é mais como naquele tempo, em que quando se via um vulto se aproximando já se sabia: é outro pescador pra ir fazer o mesmo que a gente, pescar. Agora tudo cresceu, tudo ficou perigoso, tem muita gente mal-intencionada, muita desconfiança. “Agora mesmo passou um grupo de ‘rapaiz’ pra lá”, disse a esposa do seu Mois(z)és, que até então não tinha dito nada.

E quem ouve concorda, escuta as histórias com tantos fatos e contada tão rapidamente. Sorri, mostra espanto, faz gesto de cabeça, faz expressão de solidariedade e de reconhecimento à experiência de quem tem mais tempo, de quem conhece, de quem se preocupa e pondera sobre como as coisas mudaram. E inventa – infames ou bonitinhos – trocadilhos: “Nós mudamos, nos mudamos”.

“Mohammed não mudou”, ele pensou. E assim que pensou ele sorriu porque lembrou daquele ônibus que estava praticamente vazio.

Banco da frente no andar de cima junto à janela desocupado. Logo, a viagem de relativos 25 minutos de Holborn até Caledonian Road, ainda que houvesse algum tráfego à frente, seria razoavelmente fácil, quase agradável. Sentar nesse especifico banco dos famosos ônibus vermelhos double deck é uma das melhores formas de observar as ruas de Londres – do alto, em movimento e, de preferência, em silêncio.

Mas Mohammed, que é um dos nomes mais populares na Grã-Bretanha, queria falar. Libertado naquela manhã após cumprir dois anos de pena na prisão de Canterbury, o argelino de bigode largo e escuro, de aparentes mais de 35 anos de idade, mas o olhar tão cheio de energia que passaria por bem menos, estava comemorando. “Desculpe se estou incomodando, mas eu tô muito animado”, explicou-se ao perceber a falta de reciprocidade a sua curiosa empolgação.

Ele havia decidido sentar no banco vazio ao lado do dele e um típico comentário sobre o miserável clima inglês, especialmente péssimo no ultimo verão, foi a estratégia de Mohammed para tentar iniciar uma conversa. Observações triviais com estranhos em ônibus não são muito comuns em Londres e, diante da aborrecida resposta com um movimento de cabeça, a vontade de papear de Mohammed acabaria frustrada. De início não acreditou que se tratava de um recém-libertado, mas quando percebeu os olhos de fato entusiasmados e vibrantes do interlocutor interagiu verbalmente. A prisão inglesa é terrível, segundo o que contou. “Já estive preso na França e na Espanha também, mas aqui é a pior de todas”.

Mas não deu detalhes. Apenas suspirou e olhou aliviado pela janela o movimento da cidade. Roubo e fraude foram os crimes do experiente ex-prisioneiro. Documentos como carteira de motorista e de seguro social eram as suas especialidades.

Duas paradas antes da Blundell Street, ele apertou sua mão, perguntou seu nome e desceu correndo as escadas com uma animação juvenil. “E você vai voltar a esse negócio?”, a última e espontânea pergunta que teve tempo de fazer. “É claro! Neste país você tem que ser rápido, ou eles te devoram”, responde convicto.
Seu Moisés peregrinou, voltou e se aquietou sem ruminar na suposta Terra Prometida.

Mohammed, quando desceu do ônibus, foi à casa do amigo recuperar o gato de estimação, e não prometeu mais nada.